Thursday, May 17, 2007

Sobre o anarquismo de esquerda

[esta discussão já é um clássico]

Guilherme Roesler, do blogue brasileiro Ação Humana, escreve: "Como o próprio Rothbard diz, contra o anarquismo de esquerda: como é possivel que tudo se torne um coletivo sem que este coletivo mesmo não termine como um grande e opressor Estado, maior ainda do que aquele que tanto os anarquistas abominam? Essa questão os anarquistas da esquerda não souberam responder. E seria mesmo impossível que dessem".

Para começar, esclareço desde já que não sou anarquista (nem deixo de ser) - gosto de muitos aspectos do anarquismo, mas também de alguns do marxismo "anti-burocrático" (comunismo de conselhos, deleonismo, trotskismo, etc.), e, às vezes, até da social-democracia ou mesmo de certas variantes do liberalismo, como o georgismo ou o agorismo (pelos vistos, já ganhei um prémio por isso!).

Agora, será que os anarquistas de esquerda nunca responderam à questão "como colectivizar a propriedade sem criar um Estado"? Responderam, sim.

Em primeiro lugar, é necessário lembrar que as respostas que os "ansocs" dão a essa questão costumam ser mais "recomendativas" do que "prescritivas", i.e., são da opinião que, se o Estado desaparecer, não surgirá uma forma única de organização social, e que diferentes territórios tenderão a ter formas diferentes de organização social (sendo de esperar que, inclusivemente, em muitos se criem novos Estados, só que mais pequenos que o Estado original).

Agora, como é que os "ansocs" sugerem que a sociedade se deveria organizar? Há várias variantes, mas vou dar pelo menos um exemplo - a proposta apresentada por Neno Vasco no seu livro "Concepção Anarquista do Sindicalismo" (no capítulo "A Organização Comunista"):

"A garantia última e decisiva é o direito que, numa sociedade comunista, todos têm de entrar em cada uma das associações produtoras e de se servir dos instrumentos de trabalho que ela maneja (...)"

"Sob pena de não estarem socializados os meios de produção, nem abolida a autoridade, o sindicato, o grupo profissional do futuro tem de ser aberto e de não possuir exclusivamente os meios de produção. Cada um, se quiser, deve poder mudar de profissão ou até pôr-se a produzir individualmente. Quando, por exemplo, a união local tiver ultrapassado o ponto optimum, deixando a grandeza da associação de ser útil para embaraçar pela complexidade, fugindo à apreciação individual, os que assim o entenderem devem poder construir ao lado outra federação ou comuna".

Ou seja, basicamente Neno Vasco propunha um sistema em que os meios de produção, sendo propriedade da comunidade, fossem geridos pelos sindicatos / associações de produtores, que os poriam à disposição dos seus membros; qualquer pessoa teria o direito de entrar em qualquer sindicato; e um sindicato poderia subdividir-se se um grupo dos seus membros assim o entendesse.

Desta forma, teríamos uma sociedade, simultaneamente, sem Estado nem propriedade privada dos meios de produção (note-se que não digo "sem posse privada" - poderia perfeitamente haver instituições como o moshav israelita, em que a terra pertence à comunidade, mas cada família explora a "sua" parcela): os meios de produção seriam, em última instância, propriedade de todos, já que, se qualquer pessoa pode entrar em qualquer das sindicatos que os administram, quer dizer que toda a gente acaba por ter direito ao uso desses bens (podem é não exercer esse direito); e o poder não estaria centralizado num Estado, mas distribuído pelos vários sindicatos (em que até se poderiam subdividir).

Pode-se perguntar - "como é que, sem um Estado, se impedia o aparecimento de propriedade privada?". Vou tentar responder a isso (agora não é o Neno Vasco, sou mesmo eu).

Imagine-se que alguém se dizia "dono" do determinado bem. O que aconteceria numa sociedade anarco-socialista? Poderemos imaginar vários cenários:

1) Não haveria mais ninguém nessa sociedade interessado em utilizar esse bem - nesse caso, o suposto dono poderia proclamar-se "dono" à vontade;

2) Haveria mais alguém interessado em utilizar esse bem:

2.1) Esse alguém e o suposto dono chegariam a um acordo para a utilização do bem - esse acordo seria "unenforceable" (alguém sabe como dizer isso em português?), mas, enquanto as partes envolvidas estivessem de acordo, tudo bem.

2.2) O alguém decidia usar o bem sem autorização do suposto dono

2.2.1) O suposto dono não oferecia qualquer resistência - nesse caso, também tudo bem.

2.2.2) O suposto dono tentava, através da violência, impedir o "alguém" de usar o bem, e o "alguém" decidia resolver a questão numa luta mano-a-mano - de novo, também tudo bem (se duas pessoas andam voluntariamente à porrada uma com a outra e sem envolver terceiros, eles lá sabem...)

2.3 /2.2.3) O alguém pedia auxilio à sua "associação protectora" (que suspeito muito que coincidisse com o sindicato) - este passo poderia ocorrer tanto logo quando o suposto dono recusasse o uso do bem, ou após este usar a violência para impedir o uso - nesse caso, a associação iria analisar a reivindicação do "alguém" e...

2.3.1) A associação concluía que a reivindicação do "alguém" ao uso do tal bem não se justificava (p.ex., podiam concluir que "o teu sindicato já põe à tua disposição bens suficientes para não precisares de estar a chatear aquele desgraçado!") - nesse caso, a associação não interviria

2.3.2) A associação concluía que que a reivindicação do "alguém" era justa (p. ex., podiam concluir que "aquele individuo está a proclamar-se dono de bens muito superiores aos que lhe cabem numa sociedade justa!") e apoiá-lo (inclusivamente por meios violentos, caso o suposto dono fosse por esse caminho), o que levaria, provavelmente, a que o suposto dono tivesse que renunciar à sua suposta propriedade

Algumas questões que se podem levantar:

P: E se o suposto dono também recorresse, p. ex, a uma agência de segurança privada?

R: Recordemos-nos que estamos a falar de uma região povoada por anarco-socialistas - uma agência de segurança que vá defender os direitos de propriedade capitalistas numa região assim dificilmente será bem sucedida (e, numa perspectiva estritamente financeira, provavelmente terá prejuízo); o mesmo, aliás, é valido, para o cenário oposto

P: Essa associação protectora (ou sindicato) não acabaria por ser igual a um Estado?

R: Não, nomeadamente porque existem (ou podem existir) várias associações desse género (em vez de ser um monopólio, como é o caso do Estado)

P: Pronto, essa associação não é um Estado. Mas o conjunto das associações não acabará por ser similar a um Estado (constituindo um "Estado acéfalo", por assim dizer)?

R: Talvez, mas o mesmo poderá ser dito do conjunto das agências de segurança numa sociedade anarco-capitalista

Uma última nota - nestas discussões, por vezes tanto os ansocs como os ancaps tendem a adoptar uma definição peculiar de "Estado", algo estilo "um Estado é uma organização disposta a usar a violência para defender um sistema de direitos diferente do meu sistema de direitos favorito" - isto é, os ancaps argumentam que uma "milícia popular" que apoie a expropriação de propriedade privada é um "Estado com outro nome"(1) e os ansocs consideram que uma agência de segurança privada contratada por um capitalista para defender a sua propriedade é um "Estado com outro nome". Ou seja, adoptam uma definição totalmente subjectiva de "Estado" que permite a qualquer facção existente ou imaginária de "anarquistas" dizer "nós é que somos os verdadeiros anarquistas - os outros são estatistas disfarçados!".

(1) para falar a verdade, creio que o autor a que linko (George Reisman) não é "anarco-capitalista" mas "minarquista", mas essa linha de raciocínio é frequente nos ancaps e, de qualquer forma, se Reisman não é ancap, é um "compagnon de route" dos ancaps do Mises Institute.

5 comments:

Miguel Madeira said...

Por qualquer razão, quando escrevi este post a opção "comentários" estava desactivada (acho que houve uma mudança qualquer no blogger ontem, e se calhar ficou assim por omissão). Já a activei e trancrevo o comentário que Luis do Ó deixou a respeito dest post:

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Luiz do Ó disse...

Bom, seu blog é bem legal. Acho, que já conhecia ele de um post que mencionava Kevin Carson. Entrei agora por causa do seu comentário no "Ação Humana".

Esse ponto do serviço de segurança numa sociedade anarquista é sempre polêmico. Vou colar alguns comentários feitos por mim nunha discussão sobre isso:

Eu acredito na cooperação voluntária, acho que indivíduos deveriam estar disposto da sofrer o uso da força caso quebrem as leis que se tornaram dispostos a seguir.

A pergunta é: Ora, mas o que voce está fazendo é uma defesa do Estado, do contrato social? Minha resposta é: não.

Como já falei, meu principal problema com o estado é que ele não é realmente voluntário. O indivíduo simplesmente não pode requerer o direito de ignorar o estado (mesmo que isso significasse sua exclusão da rede de proteção) ou o direito de se separar do estado.

Meu modelo de serviço de segurança e justiça numa sociedade libertária seria ligeiramente mais radical do que a democracia federalista, seria algo como uma democracia federalista realmente hardcore. Pequenas cooperativas de auto-proteção e leis próprias das quais o indivíduo escolheria participar e das quais o mesmo teria liberdade de recusar o serviço.

Dessa forma, o incentivo para que indivíduos seguissem as leis seria o medo de perder a proteção da cooperativa e o incentivo para que não surgissem leis opressoras seria a possibilidade de renúncia dos protegidos.

É o tipo de sociedade que dependeria muito da disposição individual em viver livre? Sim. Mas há outro jeito? Eu acho que sou um cara otimista. Mesmo no sistema atual, onde ainda há elementos extremamente opressores, eu duvido que algumas das tiranias da Velha Ordem pudessem ser restabelecidas porque as pessoas simplesmente não estariam dispostas em consetir tal coisa.

Desculpa, ficou grande. Mas o modelo que eu apoio, e em qual estaria disposto a participar, é o de cooperativas de auto-defesa. Algo semelhante ao federalismo proudhoniano, à auto-gestão. Acredito que a liberdade é a melhor opção sempre, inclusive no setor de justiça e segurança; e acredito que essa liberdade levaria aos mais diferentes modelos de organização.

Sobre anarquistas e "esquerda" e "direita", bem, isso tem se tornado um ponto comum no meu blog. Acho que o diálogo entre correntes poderia ser bem maior.

P.S: Reisman é um babaca!

Guilherme Roesler said...

Miguel,
eu interpreto este pensamento de Rothbard do seguinte modo: não é que ele quis dizer que os anarquistas de esquerda não deram uma solução ao problema do Estado. Seria uma leviandade pensar assim, creio eu. O que imagino ter Rothbard pensado é que a solução dada ao problema do Estado pelos anarquistas não foi satisfatória. Em um de seus textos ele diz:

“Si hay algo, por ejemplo, que el anarco-comunismo odia y desprecia más que el Estado son los derechos de propiedad privada; en realidad, la principal razón por la que los anarco-comunistas se oponen al Estado es porque creen fervientemente que es la fuente y el custodio de la propiedad privada y que, por tanto, la abolición de la propiedad pasa por la destrucción del aparato estatal. No comprenden que el Estado siempre ha sido el mayor enemigo e invasor de los derechos de propiedad . Asimismo, menospreciando y repudiando el libre mercado, la economía de las ganancias y las pérdidas, la propiedad privada y la afluencia material – lo uno siendo corolario de lo otro – los anarco-comunistas erróneamente identifican el anarquismo con la vida comunal, con el intercambio tribal y con otros aspectos de nuestra emergente cultura juvenil de drogas y “rock and roll”.

Neste mesmo texto ele diz:

“Lo único bueno que puede decirse del anarco-comunismo es que, en contraste con el estalinismo, su forma de comunismo sería, se supone, voluntaria. Presumiblemente nadie sería obligado a integrarse en las comunas, y aquellos que quisieran continuar viviendo individualmente y emprender actividades de mercado, podrían hacerlo sin ser molestados. ¿O sí serían molestados? Los anarco-comunistas siempre han sido extremadamente vagos y nebulosos acerca de los rasgos característicos de su proyectada sociedad anarquista. Muchos de ellos han planteado la idea profundamente anti-liberal de que la revolución anarco-comunista tendrá que confiscar y abolir toda la propiedad privada, para alejar a cada uno de su vinculación psicológica a su propiedad particular”.

Assim, o próprio Rothbard reconhece a voluntariedade como semelhança do anarco-capitalismo e do anarco-comunismo. Entretanto, o anarquismo tem muitas posturas teoricas semelhantes com o socialismo, e uma das mais graves ao meu ver, por exemplo, que por sinal ocorreu na pratica, é o horror que ambas teorias nutrem ao dinheiro (ao capital de um modo geral). Ambas as teorias de esquerda o tomam como uma das raízes do mal, da exploração etc. Na Espanha, por exemplo, quando os anarquistas discípulos de Bakunin e Kropotkin tentaram abolir o dinheiro, houve o caos. Penso que o anarquismo de esquerda, por ter tais semelhanças ao comunismo, torna-se impraticável. Alias, em relação a exploração, tomo por paradigma a teoria de Franz Oppenheimer, que diz ser a exploração mantida unicamente pela ajuda e apoio do Estado, ou seja, impossível a exploração pelo capital pura e simplesmente.

Abraços, Guilherme

Miguel Madeira said...

"aquellos que quisieran continuar viviendo individualmente y emprender actividades de mercado, podrían hacerlo sin ser molestados. ¿O sí serían molestados? Los anarco-comunistas siempre han sido extremadamente vagos y nebulosos acerca de los rasgos característicos de su proyectada sociedad anarquista"

Bem, isso é basicamente aquela questão "até que dimensão a propriedade privada será reconhecida?" (estilo, até que ponto será reconhecida a propriedade de alguém sobre uma casa? Se só tiver uma casa? Se não possuir mais de 50 m2 + 50 m2*(tamanho da família)? Se habitar nela mais de seis meses por ano? etc.). No fundo, é a tal questão sobre a qual a associação/sindicato iria deliberar nos pontos 2.3/2.3.1/2.3.2 do meu exemplo. E até faz sentido que a resposta a essa questão seja "vaga e nebulosa": afinal, na inexistência de uma autoridade centralizada, não é fácil prever como essa situação será resolvida (diferentes associações teriam politicas diferentes, e o resultado final em cada sitio provavelmente dependeria muito do equilíbrio que se estabelecesse entre várias associações)

Michael Z. Lewis-K said...

I only needed to read this twice to realize how incredibly silly this notion was.

Firstly, there is no practical utility of any ‘thing’ which does not have something that has some actual value that can be derived strictly exclusively. Under capitalism, the lack of use of something that would be or value would obviously mean that there was inefficiency insofar as value of essentially zero cost was not making it to some individual, which would mean by natural incentives, by some means either of individual force, or some emerging overarching legitimating authority (by its ability to use force), the so called property would end up being distributed with relevant libertarian economic optimality.

But this essentially gets you to neofeudalism depending on the extent to which that arbitrary property can be or can become a means of production.

The legitimacy of these unions and this universal voluntarism of unions is also completely arbitrary w/o any overarching legitimating authority, which my it’s very nature could not be democratic. There is not notion of universal democracy even in theory anyway. This whole argument is a massive reductio.

If I were to tell you that I could assume based on human goodwill that said voluntary associations were possible, I could also make a whole host of extremal claims about human nature and possible systems of organization.


Furthermore, from a ‘capitalistic’ mode of production that has an overarching legitimating system for property rights, the shift of the ownership of the means of production should not at all in theory (by simply the law of general conservation), cause any change in actual production. The only important difference is growth incentive. Socialist economies if even distributed in this voluntary way with somewhat (in practice) independant unions are of completely inertial production They have no self interested basis to grow. For isomorphic reasons, the allocation of the apparent nominal surplus value of capitalism is also completely irrelevant.

None of this really is relevant anyways in terms of attaining the absolute necessities (which always has been an implicit assumption of socialism), which is where socialism stays constants but capitalism sees as irrelevant and merely a relative plateau crossed over time.

Michael Z. Lewis-K said...

I only needed to read this twice to realize how incredibly silly this notion was.

Firstly, there is no practical utility of any ‘thing’ which does not have something that has some actual value that can be derived strictly exclusively. Under capitalism, the lack of use of something that would be or value would obviously mean that there was inefficiency insofar as value of essentially zero cost was not making it to some individual, which would mean by natural incentives, by some means either of individual force, or some emerging overarching legitimating authority (by its ability to use force), the so called property would end up being distributed with relevant libertarian economic optimality.

But this essentially gets you to neofeudalism depending on the extent to which that arbitrary property can be or can become a means of production.

The legitimacy of these unions and this universal voluntarism of unions is also completely arbitrary w/o any overarching legitimating authority, which my it’s very nature could not be democratic. There is not notion of universal democracy even in theory anyway. This whole argument is a massive reductio.

If I were to tell you that I could assume based on human goodwill that said voluntary associations were possible, I could also make a whole host of extremal claims about human nature and possible systems of organization.


Furthermore, from a ‘capitalistic’ mode of production that has an overarching legitimating system for property rights, the shift of the ownership of the means of production should not at all in theory (by simply the law of general conservation), cause any change in actual production. The only important difference is growth incentive. Socialist economies if even distributed in this voluntary way with somewhat (in practice) independant unions are of completely inertial production They have no self interested basis to grow. For isomorphic reasons, the allocation of the apparent nominal surplus value of capitalism is also completely irrelevant.

None of this really is relevant anyways in terms of attaining the absolute necessities (which always has been an implicit assumption of socialism), which is where socialism stays constants but capitalism sees as irrelevant and merely a relative plateau crossed over time.