Friday, November 06, 2009

Sobre a origem do Estado


"Segundo [Nozick], o estado é um produto da ordem espontânea, resultante de necessidades individuais e colectivas de protecção, que levam à instituição, primeiro, de um “estado ultra-mínimo”, num momento em que não existe ainda a monopolização das suas funções por uma única agência política, que acaba sempre para evoluir para um “estado mínimo”, onde, por via dos processos de eliminação da concorrência, essa monopolização já se verifica. A visão de Nozick inspira-se no contrato social de Locke e não agrada a um número substancial de liberais, que preferem ver a constituição do estado com um processo artificial de conquista de poder e de vastos domínios territoriais por genuínos grupos de malfeitores (vd. a crítica a Nozick feita por Rothbard no The Ethics of Liberty), do que o resultado de necessidades espontâneas dos indivíduos e das suas formas societárias de agregação."

(...)

"De facto, se olharmos para a História, encontraremos a situação descrita por Nozick em praticamente todos os momentos registados da constituição de estados (...). Verificaremos que foram as necessidades de protecção sentidas o primeiro sentimento instituidor das formas primevas do estado nas cidades da Antiguidade Clássica, na organização feudal da Idade Média, e detectaremos também, logo em seguida, a eclosão de conflitos pela posição dominante desse mercado. A passagem desse “estado ultra-mínimo” para um “estado mínimo” opera-se, efectivamente, com a assunção do monopólio do uso da força por um desses grupos, em processos frequentemente muito turbulentos e de conflitualidade elevada."


A mim, dá-me a ideia que muita dessa polémica nozickianos/rothbardianos sobre a origem do Estado acaba por ser muito uma discussão de terminologia - afinal, penso que ambas as partes concordam que primeiro haveria uma sociedade com vários centros de poder potencialmente concorrentes, depois num "processo turbulento e de conflitualidade elevada", um desses poderes submeteu os outros e reclamou para si o monopólio do uso da força. Basicamente, os anarco-capitalistas (e os outros) chamam à primeira fase "anarquia" e à segunda "estado", enquanto Nozick parece-me que chama à primeira "estado ultra-minímo" e à segunda "estado mínimo" (e, pelos vistos, ambos concordam que, na prática, essa transição foi um processo violento).

[Fazendo um aparte, um texto interessante que não é sobre este assunto mas acho que acaba por ser sobre este assunto é "Poor Man, Rich Man, Big-Man, Chief: Political Types in Polynesia and Melanesia", em que o antropólogo Marshall Sahlins compara os sistemas politicas tradicionais das ilhas do Pacifico, nomeadamente os da Melanésia ocidental (Nova Guiné, ilhas Salomão, etc.) com os da Polinésia (Samoa, Tahiti, Hawaii, etc.) - basicamente, se fossemos navegando para Oriente, da Melanésia para a Polinésia, iríamos assistir à transformação da anarquia (ou do "estado ultra-mínimo"?) em estado, com talvez uma zona de transição pelos lados de Fidji e da Nova Caledónia]

Penso que grande parte da polémica radica no que já falei em tempos, a ambiguidade da expressão "espontâneo": "espontâneo" por vezes é usado no sentido de "não-planeado", e outras vezes no sentido de "não-imposto"; aliás, conjugando a ambiguidade de "espontâneo" com a ambiguidade de "voluntário", concluímos que "espontâneo" tanto pode ser sinónimo de "involuntário" como de "voluntário"...

Suponho que Nozick (e os seus discipulos), no fundo, argumenta que o aparecimento do estado foi algo de espontâneo (ou por uma "mão invisivel") no sentido de não-planeado. Mas como (sobretudo no vocabulário liberal e liberal-conservador) "espontâneo", "mão invisível", etc. têm também a conotação de "livre", "não-coercivo", etc., isso soa como se se estivesse a dizer que o Estado apareceu de forma voluntária, pelo livre consentimento dos seus súbditos...

[nota importante: eu nunca li directamente nada de Nozick, apenas referências em segunda mão, pelo que talvez seja eu que tenha percebido completamente mal a posição nozickiana]

No comments: