O Expresso noticia que "Aumentam as investigações por assédio sexual", dizendo que "foram abertos 903 inquéritos por importunação sexual, crime no qual se inclui o assédio, mais 33 do que em 2017"; depois grande parte da noticia é com supostos especialistas a argumentarem que o crime de assédio sexual deveria ser autonomizado e separado do de "importunação sexual".
Eu não percebo é onde é que foram buscar a ideia de que assédio sexual está incluído no crime de importunação sexual; eu não sou jurista, mas a mim parece-me que o assédio sexual corresponde muito mais à "coação sexual" (ou até a certas versões da violação) do que à "importunação sexual" (e sobretudo à "coação sexual" e "violação" como eram definidas até 2015). Compara-se como são definidos os crimes:
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar acto sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até dois anos.
Coação sexual (versão atual)
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão até três anos.
Importunação sexual
Os pontos 2 das versões antigas da "coação sexual" e da "violação" parecem-me exatamente o que 99% das pessoas acha que é "assédio sexual"; é verdade que na nova versão está um bocado diluído (substituindo o "abusando de autoridade" por "por meio não compreendido no número anterior"), mas parece-me que o assédio sexual continua lá incorporado; já a "importunação sexual" parece-me aplicar-se mais aos maluquinhos das gabardinas até aos pés do que propriamente ao assédio sexual.
É verdade que o alargamento das definição de coação sexual e de violação pode ter tido um efeito perverso - a versão inicial, referindo explicitamente "dependência hierárquica, económica ou de trabalho" definia claramente que era violação se um chefe usasse a ameaça de uma má avaliação ou uma não-renovação de contrato para levar uma empregada a ir para a cama com ele; a nova variante, com a sua redação vaga, pode abrir caminho a uma enorme discussão sobre se isso se considera ou não "por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa..." (mas atendendo que a ideia da alteração da redação foi aumentar o âmbito das situações em que se considerava que havia "coação sexual" ou "violação", penso que está implícito que tudo o que antes estava incluído continua incluído).
Suspeito que o problema é que há efetivamente uma escola de pensamento que desvaloriza o critério "submissão hierárquica" como definidor do assédio sexual, mas fazendo isso entram no que me parece um beco sem saída intelectual; nomeadamente alguns preferem considerar que o que define assédio sexual é ser feito com o objetivo de humilhar ou ofender a vítima, mas isso parece-me não levar a lado nenhum (o patrão que insinua a uma empregada que a renovação do contrato depende de ela ir para a cama com ele faz isso com o objetivo de a humilhar ou diminuir a sua dignidade? Talvez seja o caso de alguns, mas outros - suspeito que a maioria - o objetivo é mesmo terem sexo com a empregada, e o "humilhá-la" será apenas um dano colateral, e se calhar até preferiam que a empregada fosse para a cama com ele de livre vontade, mas na minha opinião não deixa de ser assédio sexual por causa disso).
Diga-se, aliás, que a forma como o Código do Trabalho define "assédio sexual" parece-me derivada dessa visão:
2 – Constitui assédio sexual o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito referido no número anterior.
3 – À prática de assédio aplica-se o disposto no artigo anterior.
4 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto neste artigo.
De novo, assédio sexual é definido como "comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador" - o "ou o efeito" melhora um pouco a situação (já que admite que o hostilizar ou degradar o destinatário pode não ser a intenção), mas a ideia básica continua a ser de que o assédio sexual tem por objetivo criar um ambiente hospital ao trabalhador; suspeito que se levássemos essa definição à letra quase ninguém seria condenado por assédio sexual, já que inverte largamente os termos - desconfio que no mundo real, o assédio sexual consiste em criar um ambiente potencialmente hostil a fim de conseguir algo sexual com alguém (estilo tratar mal uma trabalhadora que tenha rejeitado avanços, para ver se ela cede) e não o inverso (o Código do Trabalho parece escrito a pensar num cenário em que alguém quer que uma trabalhadora se despeça, e faz-lhe propostas sexuais, apalpa-a, etc. com a intenção de ela se sentir desconfortável e pedir a demissão - duvido que essa situação seja a mais comum).
Ainda sobre este assunto, ver esta discussão no Vias de Facto.
[Título roubado ao deste post; estas discussões semânticas sobre qual deve ser o significado exato de expressões são uma obsessão minha]
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