Tuesday, December 20, 2005

Democracia Directa na Revolução Francesa?

No blog Semiramis, Joana argumenta que a França sob o "Terror" não era um sistema representativo, já que "Paris esteve, nessa época, dominada pela Comuna de Paris cujo poder assentava nas secções populares armadas (...) que sitiavam e invadiam a Convenção (...) quando pretendiam impor-lhe a sua vontade".

Caso alguns dos meus leitores não esteja familiarizado com os detalhes da Revolução Francesa, vou explicar o que eram as "secções" e a "Comuna de Paris" (não confundir com a de 1871). Ou melhor, Daniel Guérin, autor do clássico "A Luta de Classes em França na Primeira República", vai explicar (poderão argumentar que o "marxista-libertário" Guerin não era um historiador isento, mas acho que podemos aceitar a sua descrição dos factos):

"Eis agora como [a Comuna] ressurgiu: os deputados de Paris aos Estados Gerais eram eleitos, em 1789, por uma assembleia de eleitores; esta, a seguir à queda da Bastilha, apoderou-se da administração da capital e atribuiu-se o velho nome de Comuna (...)"

"As 48 secções de Paris (...) eram de origem bastante mais recente. Por altura da eleição em duas fases para os Estados Gerais, o ministro de Luis XVI, Necker, dividira Paris em 60 distritos para a eleição dos eleitores que, por sua vez, designavam os representantes parisienses do terceiro estado (...). No dia seguinte ao 14 de Julho de 1789, a subdivisão de Paris em 60 assembleias de voto que, originariamente, se reuniam uma só e única vez, passou a ser permenente: mais tarde estas foram substituidas pelas 48 secções. Na véspera do 10 de Agosto de 1792, conseguiram da Assembleia o direito de se reunir em permenência; e, após o 10 de Agosto, não só para os que pagavam o «censo» mas para todo e qualquer cidadão."

Realmente, na Revolução Francesa, havia orgãos de democracia directa - as secções - mas esses orgãos não tinham poder efectivo. É certo que que a constituição de 1793 permitia às secções vetar algumas lei emanadas do poder central, mas, devido ao estado de exepção, essa constituição nunca chegou a ser implementada.

Já agora, não vejo como Joana pode dizer que as chefias da Comuna de Paris "se perpetuavam ad eternum" - a Comuna de Paris foi instituida a 14 de Julho de 1789, e a 4 de Dezembro de 1793, por decreto do Comité de Salvação Pública, os dirigentes da Comuna deixaram de ser eleitos e passaram a ser nomeados pelo CSP (inicialmente, Robespierre manteve os anteriores dirigentes, mas, pouco depois, mandou guilhotiná-los e substitui-os pelos seus homens de mão). Ou seja, mesmo que os dirigentes da Comuna tivessem sido sempre os mesmos (e não foram - na sequência do 10 de Agosto de 1792, as assembleias seccionais elegeram uma nova Comuna), teriam tido um mandato comparável aos de um múnicipio "clássico" - cerca de 4 anos.

A respeito das secções, pelo menos na de Gravilliers, aonde o conflito entre Jacobinos e Raivosos (i.e., a oposição de esquerda) era mais intenso, era frequente o "comité revolucionário" local ser destituido e re-destituido no prazo de dias, conforme a opinião pública oscilava entre os dois partidos (definitivamente, não se perpetuavam ad eternum).

Mas agora, o que verdadeiramente interessa: será que, apesar do que diziam as leis, a Convenção estava prisioneira da Comuna de Paris e das secções populares? De novo, algumas passagens de Guérin:

"A 4 de Setembro, uma multidão composta quase exclusivamente por operários invadira os paços do concelho, reclamando pão através do seu porta-voz, Tiger. Quando Chaumette [procurador da Comuna] voltou da Convenção apenas com uma promessa, a cólera do povo miúdo explodiu (...). O procurador-sindíco recorreu então aos meios radicais. Subiu para uma mesa e exclamou: «Isto é a guerra aberta dos ricos contra os pobres, querem esmagar-nos, pos bem! a gente previne-os, seremos nós próprios a esmagá-los com a nossa força»".

"Mas, no dia seguinte, precedidas e enquadradas pelas autoridades constituidas da Comuna, as delegações populares dirigiram-se obededientemente à Convenção, para nela apresentarem uma petição redigida por Chaumette. As delegações foram admitidas na tribuna, convidadas a ocupar as bancadas da sala das sessões. Chaumette, passando por cima do que afirmara na véspera e esquecendo o mandato que lhe fora confinado pelos manifestantes, fez um discurso oco e grandiloquente"

"O operário Tiger não reconheceu na petição de Chaumette as reivindicações que formulara em nome dos sans-culottes. já a 4 à noite, no Conselho Geral, combatera com várias moções o texto do procurador da Comuna. No dia 5 de manhã, dirigiu-se ao domicilio de Chaumette e disse-lhe: «Tenha cuidado em executar como deve ser a vontade do povo na petição que vamos apresentar à Convenção Nacional». Um pouco mais tarde, quando as delegações se dirigiam já dos Paços do Concelho para a Convenção, juntou-se ao cortejo dos cidadãos e gritou: "Parem, parem, Chaumette não respeitou a vontade do povo». De tarde, no Conselho Geral da Comuna, Chaumette, ao citar este incidente, tratou Tiger de "contra-revolucionário" e de "assassino" e conseguiu que esse «senhor» fosse imediatamente preso."

Desta passagem, facilmente se conclui que a Convenção e a Comuna de Paris até não tinham assim tanto medo da "populaça" - não só Chaumette não teve problemas em apresentar na convenção um proposta completamente diferente da que tinha sido discutida com os operários, como até mandou prender o porta-voz destes.

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