Para Pedro Silva, da
Armadilha para ursos conformistas,
o "típico militante de esquerda" vive "mentalmente" nos anos 60; em aparente consonância,
Sabine escreve
"Embora admire muitos activistas da esquerda nos anos 60 do século XX, penso que é tempo de adoptar novas maneiras de pensar e (sobretudo) de agir".
Pois, eu acho que a esquerda actual tem muito pouco de espírito "anos 60", tanto nas formas de pensar como, talvez sobretudo, nas de agir: em larga medida, a esquerda não ficou presa nos anos 60 - regressou aos 50.
Nomeadamente, a esquerda de agora (comparada com a dos "60") regressou muito ao paradigma "estatista/legalista", de acreditar que a "ferramente principal" para mudar a sociedade é o Estado (e, pelo caminho, muita desistiu de tentar melhor a sociedade...)
Por exemplo, quando, em 1964, a Universidade da Califórnia proibiu actividades políticas por parte dos alunos (recorde-se que era a altura do Vietname, do movimento pelos direitos dos negros, etc.), o que é que estes fizeram? Desafiaram as proibições, foram suspensos, enfrentaram a repressão policial convocada pelas autoridades académicas, etc - o chamado
"Free Speech Movement" (cujo um dos activistas - Jack Weinberg - inventou a famosa expressão: "não confiem em ninguém com mais de 30 anos"; ou seja, não confiem no que que escrevo). Hoje em dia, a primeira reacção de grande parte da esquerda a uma situação dessas provavelmente seria "precisamos de uma lei que obrigue as universidades a respeitar a liberdade de expressão", em vez de a tentarem conquistar pela sua própria luta.
E se olharmos para o conjunto dos "anos 60", seja nos EUA, na Holanda, em França (e, por maioria de razão, em Portugal), o que os caracterizou foi a tentativa de começar a criar já uma nova sociedade (desde os activistas dos direitos civis nos EUA que boicotavam as leis racistas no Sul até aos estudantes portugueses que organizavam
"cursos livres" nas universidades, passando pelas mulheres da classe média que começaram a recusar ser donas-de-casa), em vez de ficar à espera que alguém criasse essa nova sociedade por decreto (como é óbvio, no caso português, isto era reforçado por o Estado vigente ser o "inimigo").
Um simbolo: nos anos 60, fazia-se a apologia do "amor livre" e criticava-se o casamento (um slogan feminista era "o casamento é prostituição permanente; a prostituição é casamento temporário"); agora, luta-se por alargar o direito ao casamento (
eu até apoio essa reivindicação, mas não deixa de ser uma evolução significativa).
Mas, além dos métodos (acção directa vs. mudança "por decreto"), também o conteúdo das reivindicações mudou (nem que seja porque o mundo mudou): p.ex., nos anos 60, criticava-se a mentalidade do "homem da organização" e, pelo menos em certos sectores, fazia-se a apologia de uma vida sem trabalho fixo e regular (gênero dedicar-se à pintura e vender os quadros na rua); agora a principal reivindicação é a segurança no emprego (claro que isso é uma consequência da
"hierarquia das necessidades": só nos começamos a preocupar com a auto-realização quando o sustento e a segurança estão realizados; quando deixam de estar, começamos é a querer segurança).
Aliás, o chavão preferido da esquerda actual, "neoliberalismo" (a direita usa mais chavões que nós: além desse clássico que é o "politicamente correcto", tem também o "relativismo", o "eduquês", etc.) vai completamente ao arrepio da tradição ideológica "anos 60": na época, o pensamento dominante entre a esquerda (ou, pelo menos, a mais radical) não era propriamente atacar o "capitalismo neo-liberal e desregulado"; era dizer que a economia capitalista só não entrava em colapso devido à intervenção estatal (que impediria as crises económicas) e que a economia mista (hoje defendida com unhas e dentes contra os "neo-liberais") não passava de um instrumento ao serviço da "burguesia".
Diga-se de passagem que essa conversa de "neo-liberalismo" muitas vezes não faz grande sentido: p.ex. há uns tempos,
a revista do Bloco de Esquerda chamava ao Katrina "furacão neoliberal", devido aos projectos de reconstrução urbana que iriam expulsar os pobres da cidade. Ora, um megaprojecto de restruturação urbana promovido pelo governo federal é tudo menos "liberal" (com ou sem "neo"). E é discutível se existe realmente algum "neo-liberalismo":
há fortes argumentos de que nem sequer Reagan ou Tatcher reduziram o "peso" global do Estado, apenas alteraram as formas de intervenção e os seus destinatários (ou seja, se calhar, os autores dos anos 60 tinham razão e o capitalismo precisa da intervenção estatal para não "estoirar").
Finalmente, o que eu quero dizer com "a esquerda regressou aos anos 50"? Vou explicar: a esquerda dos anos 60 surgiu em larga medida da rejeição dos modelos das esquerdas anteriores - o "socialismo real" no Leste e o "Estado Social" no Ocidente. O argumento era que esses modelos até podiam ter elevado o nível de vida material dos trabalhadores, mas não tinham resolvido o que para eles era o problema principal: os trabalhadores estarem remetidos ao papel de meros executantes dos projectos concebidos por outros (no Ocidente, porque o poder no processo de produção continuava nas mãos dos capitalistas; no Leste porque os capitalistas haviam sido substituidos pelos burocratas estatais).
Assim, a "nova esquerda" dos anos 60 procurou criar um "novo socialismo", assente na "democracia participativa", no "controle operário", na "autogestão", na "acção autónoma das massas", no "poder popular de base", etc. (na verdade, essas ideias não eram tão novas quanto isso: é basicamente o que os anarquistas defendiam desde o século XIX e os comunistas "dissidentes" desde os anos 20). É verdade que alguma dessa esquerda apoiou regimes (como Cuba ou China) que não tinham nada disso, mas, há época, havia uma visão muito confusa desses regimes (tudo o que parecesse diferente da URSS bastava para pôr muita gente de cabeça à roda - p.ex., como Mao mobilizou os estudantes para atacarem os seus opositores dentro do PC, criou-se logo o mito de "Mao está ao lado das massas contra os burocratas"); além disso, muitas facções, como os anarquistas, a
Internacional Situacionista, os trotskistas, etc., não cairam nesses disparates (em rigor, quase me arriscaria a dizer que o maoismo só terá começado a ser importante nos anos 70).
Além disso, como já não era uma questão de distribuir a "riqueza" mas sim o poder, a luta de classes foi alargada da luta pobres/ricos para a luta mais ampla dominados/dominadores: passou-se a considerar que, junto ao conflito trabalhador vs. patrão (ou trabalhador vs. gestor estatal), tinhamos também os conflitos entre jovens e adultos (nomeadamente os conflitos filhos-pais e alunos-professores), entre mulheres e homens, das minorias étnicas e sexuais face aos grupos maioritários, etc, e assim nasceram as famosas "causas fracturantes".
Ora, o que a esquerda dos nossos dias faz não é defender o "controle operário" ou a "democracia participativa" (na verdade, hoje em dia, às vezes encontramos mais conversa parecida com essa da boca de gurus da gestão empresarial), é defender o que resta do Estado Social. Quanto as "causas fracturantes" foram em larga medida despojadas da sua componente anti-hierárquica e anti-autoridade.
Ou seja, a esquerda actual, tanto nos meios (intervenção governamental em vez de acção directa) como nos fins (defesa do Estado Social) o que fez foi regressar aos modelos anteriores aos anos 60 - ou seja, está a defender as ideias da esquerda dos anos 50 (a que criou o Estado Social).
Nota final: como qualquer pessoa que clique
no meu perfil pode ver, toda esta minha conversa sobre os anos 60 se baseia em informação em segunda mão, já que nasci em 1973.